sexta-feira, 24 de abril de 2015

Incandescência e desorientação


Femme assise accoudée, Pablo Picasso, 1939, óleo sobre tela

Não foram somente o 15 de março, a demissão do ministro Cid Gomes, a queda vertiginosa dos índices de popularidade da Presidente e o documento-bomba da Secretaria da Comunicação Social, mas estes acontecimentos e o cruzamento diabólico entre eles deram o tom da chamada conjuntura política das últimas semanas. Chacoalharam o governo Dilma, aumentaram os desencontros em seu interior e lançaram uma perturbadora interrogação sobre o que serão seus próximos quatro anos.
O governo Dilma, porém, não acabou e seria um erro dar como favas contadas que não terá como se recuperar. Ficou mais difícil, mas não impossível.
Se o 15 de março e a queda de popularidade mostraram que a resistência social ao governo está se convertendo em fato político, os outros dois acontecimentos revelaram um governo com demasiados problemas internos, desorientado e carente de articulação.
Um governo sem rumo e sem unidade torna-se produtor de problemas, não de soluções. Ter um governo assim logo no início de um período governamental é algo que excita seus adversários e alimenta a crise. Mostra, por exemplo, que não há plano de voo e que não se pode saber quem apoia a Presidente e quem lhe faz oposição. Turvam-se as águas, aumenta a confusão. As próprias forças tidas como sustentáculo governamental – o PT e o PMDB – se dessolidarizam e ficam, cada uma a seu modo, fazendo somente o próprio jogo, sem sincronia com o Palácio do Planalto. Fazem contas para saber como evitar os respingos da crise. Passam a olhar para as eleições municipais de 2016, ao passo que a Presidência precisa olhar para o dia-a-dia e para 2018.
PT e PMDB podem até fazer juras recíprocas de amor, falar bem de Dilma em público, mas por trás do pano agem de forma defensiva, terminando por produzir desgastes e contrapontos. Não é somente Eduardo Cunha, este presidente da Câmara que opera sem pudor em favor dos próprios interesses, age corporativamente e consegue se fortalecer mesmo cercado de suspeitas, mostrando ser um animal político difícil de enfrentar. É ele, com certeza, mas também é o PMDB como um todo e parte importante do Congresso Nacional.
O caso Cid Gomes chamou atenção pela incandescência e pelo baixo nível. O ex-ministro fez seus cálculos. Não queimou munição à toa, num ímpeto de descontrole emocional. Quis sair de dedo em riste, como aquele que confrontou os que “achacam” a República. Jogou para uma parte da plateia, que não suporta os políticos atuais. O episódio foi péssimo tanto para o Planalto quanto para a imagem do Parlamento e deixou patente que falta graxa nas relações entre os poderes da República, que não há qualidade no ministério, que o Legislativo é hoje uma bomba que explode a intervalos regulares, sem que haja quem a desarme. Os pedaços do Congresso que desafiam a Presidência deitam e rolam na mesma proporção que os demais pedaços não se movimentam.
O documento da Secom – divulgado pelo O Estado de S. Paulo dias atrás – foi sintomático. Podemos deixar de lado suas impropriedades (a confusão entre governo e partido, por exemplo) e ficar somente com o que disse a respeito do “caos político” que estaria a ser fomentado pela inação governamental. Segundo o texto, “o governo e o PT passaram a só falar para si mesmos”. Foi um diagnóstico duro, incômodo, chega a ser surpreendente que tenha chegado ao grande público. O ministro responsável pelo texto se demitiu, mas o estrago se espalhou. O presidente do PT, Rui Falcão, fez crescer o vespeiro, ao propor que o governo corte a verba de publicidade destinada a veículos de comunicação que “apoiaram e convocaram” as manifestações.
O 15 de março ajudou, de forma ruidosa e polifônica, a descortinar a desconexão entre o Palácio e as ruas. Diante dele, o governo falhou duplamente. Errou ao responder por dois porta-vozes que não conseguiram expressar a gravidade do momento, como se ao governo fosse indiferente o protesto, e errou na análise do fato.
Nem ele, nem seus apoiadores, parecem entender o que está acontecendo com as ruas do País de 2013 para cá. Não decodificaram as vozes que se manifestaram ostensivamente contra a Presidente agora em 2015. Optaram por tentar deslegitimar a manifestação, convertendo as pessoas em massa de manobra da “elite branca” e da “mídia golpista”. Pior que isso, não conseguem explicar porque a “direita” mostra hoje tanto vigor, a ponto de fazer inveja à “esquerda”. Aceitam com incrível facilidade a tese de que os “ricos” têm “ódio” de Dilma e do PT. Estão congelados na mesmice adjetivada, repetindo que a parte (as faixas pedindo intervenção militar) explica o todo, que o 15 de março fez lembrar a Marcha com Deus pela Liberdade de 1964. Querem banalizar a multidão, mas só fazem irritá-la.
As ruas não se movem por utopias substantivas, não têm um programa com que lutar. São contra Dilma, políticos e partidos. Não são a favor de nada. Exprimem uma gigantesca insatisfação social com a política, processo em que se misturam indignação, ressentimentos e frustração.
Mas pau que bate em Chico também bate em Francisco. Não é só o governo que está à deriva, mas o País todo, o sistema político tal como em funcionamento. Hoje, o que prejudica o governo não beneficia a oposição a ele. Não há partidos, núcleos democráticos articuladores ou dirigentes políticos a lucrar com a crise, fato que faz o quadro ficar ainda pior. Quem fala pela oposição? O que faz ela, qual seu programa de ação? Se há bons nomes para liderar os que se opõem ao governo, por que não assumem o primeiro plano e se apresentam para “salvar” a República?
A resposta provável talvez nos ajude a relativizar a situação. Os lideres oposicionistas não se projetam pelas mesmas razões que fazem a Presidência sangrar a céu aberto: porque não dispõem de nexos com as correntes vivas da sociedade. É aí, nesta praga maior do capitalismo líquido e globalizado, que reside o maior desafio. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 28/03/2015, p. A2].

segunda-feira, 2 de março de 2015

O centenário de Artigas, arquiteto militante


Num momento em que aumenta a perplexidade diante das cidades modernas e, em São Paulo, cresce a discussão sobre habitação popular e mobilidade, vale a pena retornar aos arquitetos e urbanistas que marcaram época com seu trabalho e suas criações. João Batista Vilanova Artigas (1915-1985) é certamente um deles.
Um dos mais importantes arquitetos brasileiros do século XX, Artigas merece atenção técnica, política e cultural. Em 2015, diversas iniciativas registrarão o centenário de seu nascimento, ajudando-nos a compreender o papel emblemático que desempenhou entre nós.
Paranaense de Curitiba, Artigas formou-se na Escola Politécnica da USP (1937) e radicou-se em São Paulo. Foi fundador (1948) e professor universitário da FAU – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, cujo prédio na Cidade Universitária ele mesmo projetaria. A partir de então, desempenhou papel-chave na prática e no ensino da arquitetura. No início dos anos 1960, coordenou a reestruturação curricular do curso, contribuindo para fazer com que a arquitetura brasileira passasse a considerar a generalidade dos problemas da criatividade espacial numa sociedade que se urbanizava aceleradamente, trazendo consigo a expansão imobiliária e o desafio da habitação popular. A reforma foi implementada em 1962 mas terminou por ser paulatinamente desfigurada. O golpe de 1964 caiu pesado sobre Artigas e a intelectualidade. Ele foi preso, enfrentou um inquérito policial-militar, exilou-se por um tempo no Uruguai. Voltou à FAU em 1965, mas pouco depois, em 1969, foi cassado e afastado compulsoriamente da USP, junto com vários outros colegas.
Artigas era comunista assumido, condição que naquela época servia de pretexto para tudo.
Somente reassumiu suas aulas na FAU em 1980, com a anistia. Ao retornar, o ambiente era outro, ele parecia um estranho no ninho, foi considerado sem um currículo acadêmico compatível com sua condição formal anterior. Por quatro anos, amargou a condição de auxiliar de ensino e a protelação injustificada de sua demanda pela abertura de um concurso que lhe devolvesse a cátedra que lhe tinha sido usurpada. O clima ideológico que se seguiu a 64 combinou-se com a escalada da burocratização nos ambientes acadêmicos, que teimaram em negar a Artigas o reconhecimento que já havia obtido ao longo de sua trajetória profissional e intelectual. Em junho de 1984, finalmente, realizou as provas do concurso para professor titular do Departamento de Projetos.
Artigas desenvolveu intenso trabalho arquitetônico entre 1940 e 1980. Entre as centenas de projetos e grandes obras, destacam-se o Estádio do Morumbi (1953), as estações rodoviárias de Londrina (PR, 1950) e Jaú (SP, 1970), o Anhembi Tênis Clube (1961), o Edifício Louveira no bairro de Higienópolis em São Paulo (1946), residências particulares, escolas e centros sindicais. Em 1968, juntamente com os arquitetos Paulo Mendes da Rocha e Fábio Penteado, concebeu e supervisionou a construção do Conjunto Habitacional Zezinho Magalhães Prado (Parque Cecap), um dos marcos da política habitacional e das relações entre arquitetura e poder público. A Union Internationale des Architectes (UIA) lhe atribuiu os prêmios Jean Tschumi, 1972, por sua contribuição ao ensino de arquitetura, e Auguste Perret, 1985, pelas pesquisas de tecnologia aplicada à arquitetura.
Sua opera magna, o prédio da FAU (1961), se destaca como materialização arquitetônica de um conceito de escola. O prédio não tem portas e se espalha sob uma cobertura única, como que para indicar que o aprendizado é um processo aberto e criativo, onde todos ensinam e aprendem, uma praça pública, uma ágora, um espaço democrático, urbano e político, maior e mais importante do que o recinto fechado de uma sala de aula.


Artigas sempre se debateu com uma espécie de abismo que se abria entre a função do arquiteto e sua capacidade real de questionar a estrutura capitalista de desigualdades e tensões. Sua militância ardorosa e polêmica foi em boa medida o reflexo disto. Sentiu na pele as contradições e os choques técnicos, formais, políticos e ideológicos que emergiam de uma sociedade que se modernizava sem deixar de ser “subdesenvolvida”. Para ele, o arquiteto não era um prisioneiro de suas circunstâncias e podia se erguer mais alto, valendo-se da capacidade de “elaborar propostas de futuro em termos utópicos” e de “pôr a imaginação a serviço da felicidade humana”.
Apostou enfaticamente na dimensão civilizatória da industrialização, a partir da qual seria possível “fazer casa para todos” mediante, por exemplo, a disseminação de componentes pré-fabricados. Não se cansou de denunciar as misérias da especulação imobiliária e da dinâmica mercadológica que plasmava e elitizava tudo. Foi um doublé de técnico e artista humanista: apaixonado, indignado com as injustiças do mundo, zeloso do “direito de manter suas utopias”.
Um modernista recomposto em tom nacional-popular. Jamais abriu mão da concepção da arquitetura como “uma espécie de direito à beleza”, uma atividade que deveria ter uma poesia no centro: que dignifica a pessoa e o cidadão, trata todos como iguais, se desdobrando numa cidade pensada como polis.
Vilanova Artigas morreu angustiado com o legado dramático do aggionarmento capitalista e do golpe de 1964, que “nos entregaram um país onde os problemas sociais que o arquiteto teria de assimilar, em face, digamos, da cidade de São Paulo, são de tal ordem que apavoram qualquer cidadão”.
A arquitetura e o urbanismo tinham uma dura e nobre missão a cumprir, que ele definiu de maneira pungente: “A felicidade de um povo se mede pela beleza de sua cidade”. Ao nos lembrar disso agora, seu legado mostra-se com o viço da juventude. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 28/2/2015, p. A2].

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

A cidade inimiga

461 anos depois de sua fundação, a cidade de São Paulo é uma das maiores metrópoles do mundo, mas não conseguiu se tornar mais amigável para seus moradores.
É uma terra de encontros e desencontros, sonhos e fantasias, onde o plural se impõe, as culturas se interpenetram e as experiências se multiplicam. Lócus de chegadas e partidas, de vidas que se cruzam e se prolongam no tempo, gerações após gerações, misturadas com existências fugazes, impermanências e deslocamentos incessantes. São Paulo é amada e odiada, vivida como objeto de desejo e temor, um circuito de anonimatos repleto de sucessos surpreendentes e celebridades instantâneas, que vão e vêm.
Tem tudo para dar certo, a começar da pujança econômica, do dinamismo cultural e da centralidade que ocupa no mapa político do país. É uma cidade continental, referência internacional. Mas segue à deriva, imune a tentativas de planejamento, submetida a caprichos políticos e gerenciais, a arranjos inconsistentes e à falta escandalosa de políticas públicas, como um gigante que todos temem e não se dispõem a enfrentar. Com o passar do tempo e a cristalização de suas lacunas, a cidade foi-se tornando inimiga de si mesma.
Tudo nela é difícil, caro e cansativo, a começar do lazer e do “bem viver”. O paulistano é um forte, vive num vácuo de solidariedade sustentável. Não faltam espaços para a convivência, mas eles são disputados palmo a palmo: primeiro com a especulação e os negócios, depois com o privatismo elitista e os automóveis, e por fim os cidadãos disputam-nos entre si. Filas, congestionamentos, esperas intermináveis, mau atendimento, amontoados, desgastes, custo. E o barulho permanente, sempre e em todos os lugares, a roubar o sossego, como se o silêncio estivesse proibido ou tivesse perdido “valor de mercado”.
Cidades costumam ser comparadas, determinismos históricos à parte. O preço de um ingresso de cinema, de uma refeição, de um bilhete de metrô, o tempo que se gasta em deslocamentos, a oferta cultural, o desenho urbano, a postura dos policiais, a linguagem dos moradores, o modo como lidam com o estrangeiro e o turista -- tudo serve para que se perceba a qualidade de vida em cidades diferentes.
São Paulo não sai bem neste tipo de fotografia. Ganha somente de cidades particularmente problemáticas. Perde de goleada quando comparada com municipalidades de ponta em termos de vida urbana: Paris, Berlim, Barcelona, Amsterdam, Nova Iorque, mas também Buenos Aires, Bogotá e Montevideo, bem consideradas as diferenças de escala.Há cidades mais amigáveis, outras menos. O que as distingue é o modo como a vida nelas transcorre. As mais amigáveis são as que se abrem para as comunidades e as pessoas, que as convidam para uma celebração coletiva na qual cada um possa circular, usufruir, contemplar, aprender e crescer, ser o que deseja ser, sem muitos custos adicionais. São cidades eminentemente pedestres, com calçadas seguras, automóveis submetidos ao fluxo e ao ritmo das pessoas e do transporte coletivo, que funciona sem muita reclamação. Cidades em que se pode circular sem medo, ainda que com a devida precaução. Cidades plurais, nas quais a tolerância, o reconhecimento da diversidade dos outros e a valorização do que há de comum nas experiências socioculturais andam de mãos dadas.
Cidades não nascem amigáveis: precisam lutar para ficarem assim. Podem se beneficiar de tradições comunitárias seculares, mas não se consolidam sem empenho coletivo e intervenção pública democrática, política cultural e educacional. Não são cidades sem problemas, desigualdades, tensões ou segregações. No mundo do risco, do capitalismo intensivo e do mal-estar em que se vive hoje isso, aliás, seria impossível. Elas também têm suas negatividades, seus defeitos de origem, suas periferias injustas e humilhantes. A diferença é que contam com uma corrente sanguínea de onde emanam vida cívica e parâmetros para o conjunto.
Já as cidades inimigas primam pela hostilidade e pelo alto custo existencial. Também elas não nascem assim: tornam-se. Por carência de políticas e movimentos comunitários sistemáticos, por estragos derivados de guerras atrozes, pela perda de oportunidades, pela falta de lideranças democráticas, pelos azares históricos, por excesso de mentalidade especulativa.
Cidades são filhas da História. Nas metrópoles atuais, o tempo livre encurtou, o lazer virou espetáculo, o mercado e o consumo ganharam força descomunal, tudo passou a ser agendado. Seria estranho se isto não se refletisse nas ruas. Os jovens têm menos autonomia, os encontros se dão mais em shoppings que nas praças, já não se brinca fora de casa, da escola ou de espaços controlados. A espontaneidade e a convivência aberta, geradoras de surpresas e encontros inesperados, praticamente desapareceram. Há conflitos disseminados e violência em excesso.
Por isto mesmo, todas as cidades passaram a ficar dependentes de políticas que promovam a vida urbana – urbe: civitas: polis – e a reinventem de modo continuado. Aquelas que sabem forjá-las e adotá-las, adquirem outra qualidade.
São Paulo não é seguramente um caso perdido. Há muito nela que aponta para o futuro e é disto que a cidade extrai boa parte de seu magnetismo. Mas uma cidade que olha para o futuro sem mapear adequadamente o presente em que pisa e sem valorizar de onde veio, arrisca-se a ter um futuro vazio, interposto como uma órtese às suas realidades urbanísticas e existenciais excruciantes.
Aos 461 anos de vida, São Paulo está carregada de trunfos e coisas positivas. O que falta nela são políticas continuadas, uma ideia urbana que sirva de matriz geradora e produza adesão popular, servindo assim de parâmetro para a conquista da cidade pela população. Não é somente um problema de bons ou maus governos. Mas sim de arte política superior: construção de uma cidade como pacto de convivência. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 24/01/2015, p. A2]