sábado, 24 de maio de 2014

Sinal de alerta




Num ato que causou descontentamento e frustração, mas que estava escrito nas estrelas, o Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (CRUESP) decidiu congelar os salários de professores e servidores da USP, UNESP e Unicamp, adiando para setembro ou outubro a discussão do dissídio coletivo. Somado ao clima de insatisfação crônica que hoje devasta os ambientes universitários de São Paulo, o fato abre uma clareira de oportunidade para que se reflita sobre a situação. Pouco adianta chorar pelo leite derramado, mas é crucial que se busquem saídas para a crise que ameaça crescer.  A qualidade e a posição estratégica das universidades paulistas exigem isso.
A reflexão é delicada. Antes de tudo, porque faltam consensos a respeito de praticamente tudo, da sala de aula aos laboratórios, do modelo de universidade à proporção de professores em relação ao número de servidores e de estudantes, do tamanho do atendimento à quantidade dos serviços oferecidos. As universidades respondem mal às mudanças rápidas e profundas da época atual.
Para complicar, o país não dispõe de uma clara política de ensino superior, a não ser topicamente. Agora, por exemplo, a dinâmica nacional aponta mais para a quantidade que para a qualidade, mais para o assistencialismo do que para os cuidados com o ensino e a infraestrutura. Há muita oferta de vagas e cursos em algumas regiões, pouquíssima em outras. Seguem-se critérios de produtividade que privilegiam a pesquisa avançada e a pós-graduação em detrimento da graduação. Em São Paulo, as universidades estaduais gastam energia em torno de uma meta de “internacionalização” mal compreendida, que desvia o foco das funções primordiais. Todas são muito influenciadas pelos rankings que definem as “melhores” universidades a partir de parâmetros genéricos.
Não se sabe direito como reestruturar um sistema que cresceu sem que fossem sendo estabelecidos critérios para que se equacionassem as relações entre instituições públicas e instituições particulares, entre ensino gratuito e ensino pago. As distorções que decorrem disso são conhecidas: os mais ricos vão para as melhores escolas, que são públicas e gratuitas, e os mais pobres precisam se inscrever nas universidades particulares, que nem sempre são de boa qualidade, especialmente quando as mensalidades são mais baixas.
Com a decisão do CRUESP, acende-se uma luz amarela de alerta. Sejam quais forem os próximos passos, as estaduais de São Paulo terão de aprender a trabalhar com outros parâmetros e critérios.
A justificativa dos Reitores é grave, e choca saber que se desconhecia o que estava a ocorrer. O comprometimento de orçamento com folha de pagamento atingiu proporções extremas: em torno de 105% na USP, 95% na UNESP e 97% na Unicamp. Com isso, tudo ficou mais ficou difícil.
Se a situação é essa, as universidades são autônomas e têm seus orçamentos vinculados constitucionalmente à arrecadação do ICMS, o que fazer? As reitorias estão a cortar o que podem, preservando somente os restaurantes universitários, os serviços de utilidade pública e o apoio estudantil. A busca de financiamento externo por meio da pesquisa já tem sido usada à exaustão e não parece poder ser incrementada. A venda de serviços específicos (cursos de extensão e de especialização, por exemplo) pesa pouco e não é aceita de modo generalizado.
Essa é a ponta do iceberg. Há problemas financeiros porque tem havido falhas de planejamento e gestão, a expansão não foi bem programada e porque é difícil modular um sistema que tem vida própria e foi desenhado para outra época. Os problemas também passam pela ausência de solidariedade interna nas universidades e pela resistência a que se abra mão de certas “folgas” obtidas em termos de estruturas de suporte, pessoal e espaços físicos. Os gastos são crescentes e as receitas, nem tanto.
Como, porém, a falência não está no horizonte, nem existe intransigência ou má vontade no CRUESP, chegou a hora de agir de forma mais coesa e com melhor mira. As universidades estaduais paulistas, assim como todas as outras instituições de ensino superior do país, são importantes demais para serem simplesmente abandonadas à própria sorte.
Por isso, deveria ser retomada com urgência a discussão sobre reforma universitária, até para que se visualize e se hierarquize o que deve ser reformado. Um novo modelo precisa nascer.
Em São Paulo, por exemplo, jamais se deu qualquer passo concreto para melhorar de fato a integração entre USP, UNESP e Unicamp, algo que maximize suas vantagens comparativas, reveja sua distribuição pelo território, defina melhor suas áreas de concentração, suas vocações e potencialidades. Cada uma delas tem seu próprio projeto e tenta executá-lo de costas para as demais.
Deveria haver mais esforço para inventar novos formatos institucionais, abrir mão de certos tabus (como o que reza que nada pode ser cobrado). Não é necessário que todas as escolas, de todas as regiões e áreas de conhecimento, mergulhem em programas de pós-graduação. Dá para rever a distribuição dos cursos pelo território. Pode-se rever o número de departamentos e usar mais videoconferências para a realização de bancas e concursos.
A universidade brasileira não é somente ensino e pesquisa. Inclui também a extensão, que dá destaque à permanência estudantil. É uma função nobre, pois protege e impulsiona os estudantes mais carentes, com bolsas, subsídios e auxílios (moradia, alimentação). Algo a ser defendido e preservado. Mas sempre se pode fazer mais e melhor com menos, e a imaginação deve estar a serviço disto.
Há muito que discutir, fazer e mudar. Ficar sem reação e iniciativa é tão ruim quanto se movimentar só para não ficar parado. Os momentos de inflexão não costumam durar muito no tempo, não deveriam ser desperdiçados. Muitas vezes é nas piores situações que se tomam as melhores decisões. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 24/05/2014, p. A2].

quarta-feira, 21 de maio de 2014

O medo como subterfúgio




Teve quem se confundiu, ao assistir à propaganda televisiva do PT que, em tom sombrio, invocou os “fantasmas do passado” para passar um recado eleitoral. Não fosse a coreografia subliminar e a estrela vermelha ao final, a impressão é que se tratava de uma reencarnação do “eu estou com medo” protagonizado por Regina Duarte em 2002.
Foi, no entanto, algo diferente, ainda que da mesma espécie. Em 2002, o alerta era contra o desconhecido. Explorava-se o fato de que não eram nítidas as pretensões do PT. Agora, teme-se o ontem, aquilo que se supõe ser bem conhecido: o tempo do PSDB no governo, o do “neoliberalismo”, com seu cortejo de desgraças: desemprego, miséria, fome, doença, falta de oportunidades. Como “a esperança venceu o medo” e o PT chegou ao governo, não há como pensar em retroceder. É hora de amaldiçoar as “falsas promessas”. A população precisa temer a perda do que conquistou para que, amedrontada, decida defender o governo que a teria beneficiado.
São dois tipos de medo. Pouco realistas, acabam por se equivaler: medo do futuro e medo do passado. Objetivamente falando, não há como retornar aos tempos neoliberais, seja lá o que se entenda por isso. O mundo mudou, as exigências e possibilidades são outras. Não se entra duas vezes no mesmo rio. Assim como não dava, em 2002, para temer um futuro que, como todo futuro, dependia de variáveis que não se podiam prever. Governos são sempre operadores racionais, que modificam as circunstâncias e são modificados por elas. Não são senhores da vida, da história ou do destino das pessoas.
Como em ano de disputa política acirrada o importante é derrotar os adversários, o recurso ao voto defensivo pode ajudar a que se vença uma eleição. Mas não fará com que se governe bem depois, nem transferirá apoios ao vencedor.
Ao realçar o risco que poderia vir com uma volta aos tempos da miséria e da “desesperança”, a tática do medo oculta o que virá pela frente. Pretende “tirar sua poesia do passado” (Marx), aprisionando-se a ele. Combina-se com o silêncio sobre o que se pretende fazer. No lugar da esperança, entra a resistência.
Que garantia o discurso do medo pode nos dar, por exemplo, de que o presente não está grávido de possibilidades nefastas, postergando medidas amargas que terão de ser tomadas à frente? Administrado com vistas ao sucesso eleitoral, o presente é um espaço estagnado: exclui tudo aquilo que possa ter impacto negativo nas urnas.
Isso vale para o PT e para os demais partidos. Se comprimo artificialmente o preço das tarifas de energia e do combustível para não desagradar ao eleitorado, em algum momento do ano seguinte terei de promover reajustes, sob pena de inviabilizar as finanças governamentais e de quebrar as empresas fornecedoras. A hipótese de um “tarifaço” futuro não é terrorismo eleitoral, mas algo perfeitamente razoável, quem sabe até mesmo provável, vença quem vencer. Pode-se utilizar todo o volume morto do sistema Cantareira para não ter de racionar água em São Paulo no ano das eleições, mas a conta de tal operação será cobrada em algum ponto futuro. Poderá não ser em dinheiro, mas em qualidade da água e, portanto, em saúde.
O discurso do medo é um expediente de baixa política. Um subterfúgio. Traz consigo a exacerbação dos espíritos, a caça a bruxas e fantasmas, algo estranho em partidos progressistas. Bloqueia entendimentos democráticos, como se só houvesse um caminho para o céu. Implica uma vitimização: nunca se teria “batido tanto” num presidente da República, pontificou Lula, acrescentando que isso se deve ao fato de Dilma ser mulher, ser “uma de nós” e, por isso, desagradar às elites. Esqueceu-se de observar que parte ponderável das elites está no mesmo barco do governo, o apoia e defende. Dizer que as “elites” conspiram (incentivadas pela “mídia golpista”) para acabar com as conquistas sociais do governo é fazer vistas grossas para o que há de insuficiência política e de frouxidão reformadora no governo. A culpa seria dos outros. A insatisfação social não passaria de ficção.
Este padrão de discurso impõe ao eleitor um cenário de incerteza e angústia, convidando-o a decidir com base numa reação emotiva e não na deliberação racional, a fugir do experimento democrático, a demonizar a mudança a partir de uma apologia da continuidade.
Não é razoável que se façam ameaças quando se sabe que problemas e tensões haverá pela frente, seja quem for o governo. Fechadas as urnas, algo terá de ser feito com a inflação, a irritação das ruas, a saúde e a educação. Nada disso poderá ocorrer sem sofrimento, sem uma “transição dolorosa” (Guido Mantega). Ao dizer que uma vitória das oposições anunciará o apocalipse, o PT quer sugerir que o segundo governo Dilma será o paraíso na terra.
O discurso petista do medo poderá ser entendido como reação a um discurso semelhante das oposições. Dado o baixo nível reinante, não é uma explicação imprecisa. Empregado no estilo olho por olho, porém, convida o eleitor ao retrocesso mental: leva-o de volta ao obscurantismo, tratando-o como se ele não fosse capaz de avaliar o quadro e fazer escolhas por si só. [Publicado em O Estado de S. Paulo, Caderno Aliás, 18/5/2014, p. E8].

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Nas pegadas do jovem Gramsci





Acaba de ser publicado no Brasil o brilhante livro de Leonardo Rapone, O jovem Gramsci. Cinco anos que parecem séculos. 1914-1919. A edição é da Contraponto e da FAP, com tradução de Luiz Sérgio Henriques.
A começar da bela capa, o cuidado editorial impulsiona o livro. Mas o que mais chama atenção nele é a densidade do texto, a argúcia do pesquisador, a capacidade que teve de perscrutar a trajetória de Gramsci num momento decisivo de sua formação. Para quem se interessa por marxismo e especialmente pela criatividade marxista de Gramsci, o livro é obrigatório.
Ele pode ser encontrado nas livrarias ou adquirido diretamente nos sites da Loja FAP (http://loja.fundacaoastrojildo.org.br/) e da Contraponto (http://www.contrapontoeditora.com.br).
Reproduzo abaixo o texto que escrevi para as abas da capa, com a expectativa de que ajude a realçar o que o livro tem de fundamental.
" A recepção da obra de Antonio Gramsci e o diálogo com seu legado estiveram apoiados em movimentos nem sempre entrelaçados ou simultâneos. A rápida disseminação dos textos de Gramsci colaborou para a diversificação desses movimentos, até mesmo porque se fez acompanhar de uma forte inflexão acadêmica que converteu esses textos em passagem quase obrigatória de certas disciplinas especializadas.
Hoje, em linhas gerais, dois grandes esforços de reconstrução organizam o vasto campo de estudos gramscianos. Antes de tudo, tem-se buscado reter a específica contribuição teórica e conceitual do marxista sardo, mediante abordagens que seguiram ou as trilhas da epistemologia ou a tradução do aparato conceitual introduzido por Gramsci especialmente nos Cadernos do Cárcere (1929-1935). O segundo movimento de reconstrução tem buscado o Gramsci prático, o dirigente político, e segue seus passos como militante socialista na juventude e líder comunista depois da formação do PCI em 1922. 
Especialmente na Itália, nos últimos anos, têm sido frequentes as abordagens que tentam acrescentar fatos novos à intensa atividade política de Gramsci, com objetivos nem sempre nobres ou criteriosos, que oscilam, por exemplo, entre a denúncia de certos aspectos tidos como escusos da direção comunista e a exploração dos relacionamentos afetivos e pessoais de Gramsci, antes e durante seu período de encarceramento. Trata-se de uma “leitura” que procura as luzes fáceis do escândalo, da “revelação” e da reinterpretação. Mais que elucidar o que não se sabia, tais abordagens dão prioridade à polêmica de tipo revisionista, não raro dedicada a reconstruir ou a desmontar legados históricos e políticos sedimentados.
O livro de Leonardo Rapone filia-se à historiografia, mas não se deixa levar pelas facilidades espetaculares da denúncia e da revisão. Mergulha fundo num esforço para reunir, de forma histórico-sistemática, biografia intelectual e biografia política. Seu foco é o Gramsci da juventude, em um período de formação (1914-1919) que, como sempre, deixou-se marcar por muitas influências teóricas e políticas: Benedetto Croce, Henri Bergson, Georges Sorel, Robert Michels, Antonio Labriola, Max Weber. Em meio a essas influências cruzadas, é preciso descobrir o fio lógico que acabou por prevalecer, estruturando seu pensamento e forjando sua identidade.
Valendo-se da argúcia de pesquisador e de um sofisticado aparato especializado, Rapone acompanha Gramsci do aprendizado universitário à Primeira Guerra, à Revolução Russa e aos conselhos de fábrica, buscando entender o impacto que esses grandes acontecimentos tiveram em sua formação, em sua desprovincianização e em sua adesão ao socialismo. Do amplo diálogo intelectual que o jovem Gramsci manterá até seu encontro com o marxismo (e com Lênin em particular) emergirá o pensador antipositivista, hostil a determinismos estruturais rígidos, fascinado pela dimensão da vontade e da iniciativa humana, atento ao peso dos conflitos e das lutas de classes, um apaixonado observador da história de sua época. Descortina-se assim a formação de um militante e de um intelectual que, com o tempo, impulsionado em especial pela Revolução de 1917, passa a compreender e a valorizar o lugar da política e do Estado na transformação social e na modelagem daquilo que, para ele, seria a “sociedade regulada”.
O belo livro que o leitor tem em mãos oferece uma plataforma decisiva para que se possa compor uma imagem unitária de Gramsci, ajudando-nos a assimilar os Cadernos do Cárcere como momento de elaboração teórica marcada pela originalidade e que deita raízes em uma história prévia que precisa ser compreendida e integrada."

sábado, 10 de maio de 2014

Está tudo dominado. Porém ...




Não há lado bom e lado mau. Nem na vida, nem na política. Sobretudo na política atual: está tudo dominado. 
Bobagem a gente achar que em Brasília as coisas são feitas de um jeito, no Espírito Santo de outro, em São Paulo de outro, que o partido A é puro e bem intencionado ao passo que o partido B é a encarnação viva do demônio, que aquele ali é sincero e o outro acolá é hipócrita, e assim por diante.Há um padrão em vigor. Um angu só, como falou Claudio Capitão.
O que se tem no Brasil de hoje não é luta de classes na política, ou confrontos esquerda vs. direita em termos programáticos ou doutrinários. É baixaria e irresponsabilidade política mesmo, descarada, de todos para com todos. Há excesso de tudo o que desagrega: adjetivos, ofensas, boatos, artimanhas geradoras de medo e insegurança, táticas de marketing, fogo amigo, pegadinhas. O campo está aberto para os que desejam por lenha na fogueira sem se preocupar em saber quem sairá queimado. Ou achando que o fogo obedecerá a seus comandos e desejos. A luta de classes não chegou à política.
Onde estão as lideranças, os estadistas, os partidos, os intelectuais, o debate democrático? 
Mas... sempre há um “mas”. Reconhecer isso é somente o primeiro passo, o mais fácil de ser dado. Temos de ir além, considerar outros aspectos, valorizar as múltiplas dimensões. Para sobreviver.
Meu roteiro de sobrevivência inclui os seguintes pontos.
1. A mediocridade afeta “eles” e “nós”: não só os políticos, mas também os cidadãos. É prova de analfabetismo político (Brecht) ficar dizendo que “eles”, os políticos, são os bandidos que nos ameaçam a “nós”, os bons cidadãos, misto de mocinhos e vítimas. A responsabilidade, aqui, se distribui.
2. A mediocridade não é um problema de pessoas: tem a ver com a estrutura da vida. O capitalismo global, turbinado pelas finanças e pelos monopólios, pela obsessão do desenvolvimento e da produtividade, está triturando tudo. Há uma obra de demolição acontecendo. Até a vida tecnológica, em redes, contribui para isso. Por que a política escaparia? Como ela também precisa ser submetida, a máquina estrutural opta por desqualificá-la. É uma forma de retirar potência da política. Na desqualificação, políticos, partidos e instituições são esmagados como folhas usadas de papel. Os partidos ficam impossibilitados de funcionar como usinas de novas propostas. Cresce o número de “movimentos”, que também pouco funcionam. Os cidadãos se agitam como podem e sabem: gritando e esperneando uns, refugiando-se na vida privada outros. No meio, abandonados, ficam os políticos, os partidos, as instituições.
3. Não há bons e maus, mas há evidentemente melhores e piores. Eduardo Graeff comentou com acerto: “entre o puro e o capeta há vários tons de cinza e ignorar as gradações, achar que tudo é a mesma baixaria, é um bom argumento para não fazer nada, deixar tudo como está para ver como é que fica”. Juliana Ruiz lembrou que “os partidos, embora sofram de males muito parecidos, não são todos iguais, e votar em um ou em outro não dá na mesma”. São observações bem postas, corretas e verdadeiras. A força do cidadão consciente, nesta hora esquisita da democracia política, depende da sua capacidade de saber escolher. De reconhecer as diferenças e os detalhes. Nem tudo é igual sob o sol. Na política sobretudo, terreno por excelência da luta e do agonismo.  Mas diferenças precisam ser explicitadas, apresentadas de modo digno, traduzidas com seriedade. Os que se julgam diferentes devem mostrar suas diferenças. E elas não podem aparecer em clima de maniqueísmo grosseiro.
4. Melhores e piores não podem ser selos retóricos. Os “melhores” só poderão ser assim vistos se se qualificarem e ganharem musculatura, se seguirem uma estrada que supere polarizações artificiais, eleitoreiras, empurradas por operações de marketing, moralismo e ressentimento. Sem despolarização, não haverá polarização real: entrechoque de projetos. E os que são efetivamente “piores” tenderão a assumir o primeiro plano e aí todos perderão.
5. Uma postura crítica básica, ao alcance de qualquer cidadão, passa pelo esforço de entender o que está rolando, considerar o processo em curso, a estrutura da vida, com suas determinações, seus entraves, suas contradições e suas possibilidades. Se está tudo dominado, a melhor opção é tomar de uma lupa e de uma lanterna com luz alta e tentar descobrir os focos de vida ativa, os melhores dentre os piores, os menos ruins, aquilo que realmente importa, as molas que podem nos projetar para frente. Tal atitude, porém, passa pelo abandono de demonizações, ressentimentos e acertos de contas. Requer algum “sacrifício”, no mínimo o de sair de si e ser socialmente generoso, modulando os interesses pessoais, privados, a partir dos interesses coletivos, públicos.
6. O analfabeto político (Brecht) acha que detonar os políticos, virar as costas para a política, para o que acha ser “antiético" e “sem esperança”, fará com que ele, analfabeto, possa tocar a vida na tranquilidade de seu casulo. Lamento informar, mas não poderá. A felicidade de cada um depende em boa medida da felicidade de todos.  Ficar num canto chorando, amaldiçoando a "sociedade doente" e “o lixo que se acumula”, vaiando à direita ou à esquerda, é tão ruim que chega a ser até pior do que as atitudes predatórias dos políticos.
7. Hoje, a critica política – base do debate público democrático – está reduzida a um bate-boca cheio de ódio, sangue e “paixão” mas vazio de substância, rigor técnico e polidez. Todos agem assim. Há mais torcida e “terrorismo” que reflexão ou ponderação. Nesta modalidade de postura “crítica”, o deboche, a mentira, o exagero e a provocação se tornam motivo de vanglória e aplauso. Há muito dispêndio de energia para alimentar um jogo de esgrima sem regras. O Brasil atual é um reino onde a polarização artificial e histriônica tornou-se a praia dominante e ameaça virar cultura.
8. Está tudo dominado, mas não porque os deuses queiram. Não se trata de fatalidade, mas de coisa dos homens. Além do mais, há frestas e clareiras, onde se pode respirar, transgredir e sonhar. Nelas germinam roteiros alternativos, criadores de antagonismos produtivos e polarizações substantivas.
9. Verdade universal é que sem política (e sem políticos) o futuro não tem chances. Boa ou ruim, dominada ou não, a política continua a ser nossa principal (única, talvez) válvula de escape. Na ausência dela, cresce o autoritarismo, aumenta o poder dos poderosos, do dinheiro, das hierarquias. Multiplicam-se os linchamentos, o uso da força, a violência, a justiça com as próprias mãos.
10. Mas não nos serve qualquer política. Não basta a política dos políticos, é insuficiente a política dos técnicos. A virtude está na política dos cidadãos: na política democrática, encharcada de cidadania ativa. Escrevi isso 13 anos atrás, no livro Em defesa da política. Penso que a ideia permanece válida e atual.