sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O valor da divergência




Divergir é viver. A beleza das redes é que somos instigados o tempo todo por ideias que se chocam com as nossas. Desafiam-nos. E por isso nos fazem pensar e reformular convicções. Sem elas, estagnamos ou somos sufocados por nós mesmos, por nossas certezas, fantasias e obsessões.
A divergência é a base e o sal da democracia.
Há, porém, dois requisitos nisso. Um deles é que a ênfase na divergência não deveria implicar nem o cultivo da dúvida, nem o abandono da busca de consensos e entendimentos, especialmente quando se trata de política. Hoje, no Brasil, estamos sendo incapazes de fazer esse movimento. Tudo vira plebiscito, briga de esquina e demonstração de força. Fecham-se espaços preciosos para a acumulação de impulsos reformadores.
O outro requisito é o da reciprocidade, da abertura ao diálogo. Divergentes que não estão dispostos a te ouvir ou que não querem interagir com teus argumentos não divergem de você: contrapõem-se e te contestam. Costumam ser agressivos, peremptórios e superiores, donos da verdade ou de verdades que julgam que você não alcança.
Divergir requer educação, bons argumentos e aprendizado. Não é somente algo que se saca do bolso de qualquer jeito, em nome da democracia. Requer treino, dispensa o fígado. Se o alvo é abrir uma discussão com intuito de esclarecer (e não simplesmente de denunciar erros de alguém), é preciso um pouco de método. Coisa que se aprende, em casa, nas ruas, nas reuniões e na escola. Toda roda de conversa é, desse ponto vista, pedagógica. Ensina-nos a divergir, a convergir, a buscar consensos.
A nossa é uma época de pessoas com opinião e com excesso de informação. Todos sabem algo e têm como comunicar o que sabem. Opinião não é conhecimento, mas nem sempre a distinção é clara. Muitos usam a primeira achando que estão a praticar o segundo. É a mesma história de acreditar que fazer a crítica é desancar um autor, em vez de decifrá-lo. 
O complicado de redes como o Facebook, por exemplo, é que a divergência frequentemente se traduz como pura contraposição, regra geral acrescida de adjetivações pesadas, feitas em nome do valor em si da contestação, da "firmeza de opinião" ou da necessidade compulsiva que alguns têm de marcar posição. Como todos têm "amigos" e seguidores, logo se forma uma plateia para aplaudir aquele que teve a "iniciativa democrática" de se contrapor a você. O debate termina, assim, por ficar interditado.
Sou afortunado por me relacionar bem mais com pessoas que divergem de mim (em distintos graus) do que com contestadores puros. Diferenciando uns de outros, consigo seguir em frente sem muito cansaço.
Nem todos, porém, têm essa sorte. E creio que é por isso que tanta gente se aborrece e termina por se afastar das redes.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Ausências, atritos e expectativas


Joan Miró, Melancholic singer

O sistema presidencialista de governo caracteriza-se por centralizar a Presidência da República e depende extraordinariamente da conduta presidencial. Se o presidente desempenha bem suas funções, o sistema funciona. Se o faz com brilho pessoal, carisma e qualidade política, melhor ainda.
No Brasil, cujo presidencialismo é complicado por um federalismo imperfeito, isso é ainda mais verdadeiro. Por aqui, presidentes fracos tendem a ser desastrosos. Não podendo dispor de contrapartidas eficientes (um Legislativo de qualidade e uma sociedade civil ativa), sobrecarregam o sistema e rebaixam o padrão da governança, arrastando-o para a mesmice e a rotina.
Tudo isso é conhecido, mas deve ser lembrado sempre que se constata alguma deficiência de desempenho no governo federal ou algum atrito inconveniente entre os entes federados. A responsabilidade, nesse caso, recai tanto sobre a sobre a conduta, o estilo, as escolhas e a personalidade do presidente, quanto sobre os defeitos do federalismo. Alcança, também, os governos regionais, onde o mesmo raciocínio pode ser duplicado: quanto melhores os governadores em termos políticos e funcionais, menos chances de o sistema fraquejar e mais chances de o federalismo se tornar “cooperativo”, para usar a boa expressão empregada recentemente pelo governador mineiro Antonio Anastasia.
Não é difícil constatar, por exemplo, que o Brasil estava melhor quando Lula era presidente, se compararmos as coisas no interior do ciclo petista de governo. Em suma, o país funcionava melhor do que sob Dilma Rousseff. Em certos aspectos, a atual presidente vem tentando “copiar” Lula, mas sem sucesso. É impossível fazer isso, dada a envergadura do ex-presidente, seu prestígio internacional incomparável, sua personalidade exuberante e carismática. Dilma é tecnicista, dura, não tem empatia popular nem brilho e, acima de tudo, não se sente à vontade para animar o presidencialismo com a vitamina mais importante: a política. Mostra-se desconfortável seja para fazer a política miúda, das conversas e negociações de bastidores, seja para fazer a grande política, dos gestos e propostas abrangentes para o país. Além do mais, tem uma biografia pobre em termos de imagem e impacto social.
É o oposto exato de Lula, que imprimia ritmo e alma ao governo, deitava e rolava na política e do alto de sua inigualável trajetória de vida manejava bem o presidencialismo federativo. Pode não ter melhorado seu funcionamento ou reformulado o molejo institucional da governança, mas valorizou a Presidência e coordenou o governo com bons assessores e auxiliares. Era o grande articulador, quase onipresente. FHC também foi assim. Mas Dilma não.
É verdade que os tempos são outros, que a coalizão presidencial perdeu densidade, os partidos pioraram e a sociedade ficou muito mais “fora de controle”. Dilma, porém, não teve um “mensalão” a lhe ameaçar a jugular. A própria oposição tem sido dócil com ela, mais por incompetência do que por opção. Seu maior desafio foram as ruas de 2013, fenômeno que, para um partido de esquerda como o PT, deveria ter sido combustível, não problema. Mas Dilma não se saiu bem do confronto, independentemente do perde-e-ganha dos índices de aprovação. Não foi à luta, propôs pouca coisa de factível, não entabulou diálogos sustentáveis com os manifestantes e suas agendas. Foi atrapalhada pelo sistema e pela mediocridade da classe política, mas não mostrou habilidade para sair do cerco. Faltou-lhe virtù.
Pode-se argumentar que não há tantas diferenças entre o governo Lula e o governo Dilma, que seriam carne da mesma carne, e que Lula é o mais importante e ativo assessor de Dilma, dividindo com ela algumas atribuições da Presidência, como, por exemplo, a da comunicação e da articulação política, além de ser o principal agente da reprodução do que há de dimensão simbólica no ciclo petista.
Isso, porém, somente serve para reforçar a hipótese, agregando a ela um componente ameaçador: sem Lula, o governo Dilma talvez já tivesse naufragado, por falta de quem o fizesse respirar nos espaços vitais da política.
É evidente que há coisas boas no governo Dilma. Só não o reconhece quem pensa com o fígado. Seu problema não está no varejo, mas no conjunto da obra. Lula deixou uma marca. Outros presidentes antes dele também o fizeram, a começar de Sarney com o Plano Cruzado e a Constituinte. Com Dilma não, ela terminará seu período governamental do mesmo modo como o começou.
Não se trata de engrossar as fileiras do “volta, Lula”. O tempo de Lula talvez já tenha passado, não há como simplesmente voltar a ele. Também não há como apostar que o eventual retorno do ex-presidente traria consigo a imediata requalificação da Presidência e a elevação da qualidade da governança. É impossível falar algo a esse respeito, até porque política (e governo) é correlação de forças e circunstâncias, não somente brilho pessoal ou capacidade de liderança.
Seja como for, 2014 será uma excelente oportunidade para se por à prova esse raciocínio. Se, nele, as ruas voltarem a se mobilizar, a pressionar e a incomodar, e fizerem isso com maior envergadura política e perspectiva estatal, se os interesses organizados tiverem força, criatividade e lucidez para rever suas formas de atuação e qualificar as lutas sociais, se o debate político for depurado da baixaria e da adjetivação, descortinar um futuro para o país e abrir espaços para a cooperação inteligente dos partidos, então poderá se delinear uma situação na qual os cidadãos mandarão no país, não os governantes e os políticos. O presidencialismo e o federalismo poderão ser assim aperfeiçoados, recondicionando o conjunto do sistema político.
Afinal, é com os cidadãos e as forças vivas da sociedade que os políticos precisam pactuar, pois o Estado só faz sentido se tiver na base um pacto social consistente. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 25/01/2014, p. A2]

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Rolezinhos




O agito começou como uma farra de adolescentes, a maioria das periferias urbanas. Fazer um rolezinho significava para eles dar um passeio na meca da modernidade, os shoppings centers, cantados em veros e prosa como o local em que se pode usufruir o que de melhor oferece o mundo moderno: coisas para comprar, comer e beber, espaços para ver e ser visto. Excluídos financeiramente das possibilidades ampliadas de consumo, e sem equipamentos culturais disponíveis para o lazer, aos jovens restaria ir aos shoppings para mostrar a cara, como se quisessem gritar “existimos, prestem atenção, vejam quem somos”.
Dar um rolê significava, em primeira instância, se divertir, ficar com os meninos e as meninas, conhecer outras pessoas, quem sabe descolar algum produto irado. Em segunda instância, mais profunda, significava postular uma identidade e um reconhecimento. Mostrar que o sistema não agrada, não preenche a vida, não dá significado existencial a ninguém.
A polícia caiu de pau, reprimiu. Aliou-se com os gerentes dos shoppings, proibiu o acesso, fez triagem ostensiva baseada na avaliação de fisionomias. Começaram a fechar os shoppings ao anúncio de novos rolês. Puseram lenha na fogueira. Não tentaram negociar. Os políticos sumiram. Os partidos silenciaram. A onda cresceu. E as redes sociais bombando com novos planos e convocações.
Com senso de oportunidade, e uma boa dose de oportunismo, alguns movimentos sociais começaram a pegar carona nos rolezinhos, não para engrossá-los ou impulsioná-los ou defendê-los, mas para se beneficiar deles para avançar suas reivindicações. De repente, os que lutam por moradia (os que agitam o movimento dos sem-teto) passaram a querer protagonizar a onda, instrumentalizá-la, fazer dela uma correia de transmissão. Quiseram converter o rolezinho social em um "rolezão popular". Melaram a farra da garotada.
É hora, pois, de começar a tratar o fenômeno com mais cuidado e sensibilidade. Seria péssimo se também ele entrasse naquela dinâmica do contra-e-a-favor, que empobrece e distorce mais que esclarece.
Olhares míopes existem por toda parte, e tudo depende do que se considera importante ou não. Generalizações são sempre míopes, mesmo quando bem-intencionadas e respaldadas em experiencias vividas. O difícil sempre é captar o todo, ligar os fios das várias ações com a estrutura da vida. É o mais difícil e o mais fundamental. Sem isso, fica-se na superfície, na impressão, na adjetivação, que tanto pode servir para deificar quanto para demonizar.
Tem gente que solta foguetes só de pensar naquela pequena massa de jovens (majoritariamente das periferias) que põem em xeque os templos de consumo e se esforçam para mostrar sua voz e sua cara. Tais pessoas aplaudem e vislumbram ali o início da redenção social ou o ataque frontal ao sistema, a derradeira pá de cal no capitalismo. Outros, também para marcar posição, vão na direção oposta: retiram qualquer dignidade dos rolezinhos e os apresentam como puros e simples atos de bandidagem e vandalismo, acrescentando coisas do tipo "quem conhece as periferias a partir de dentro sabe que lá os jovens são trabalhadores e não estão a fim de dar rolê por aí". Pensam que a criminalização resolveria o problema, se é que problema existe. Foram ajudados pelos movimentos que pegaram carona e desvirtuaram algo que prometia e poderia se converter numa interessante manifestação cultural, político-existencial.
Não é preciso "ir à periferia" para analisar movimentos que com elas se relacionam ou que nascem nelas. Conhecer por dentro é bom, e os antropólogos são figuras-chave nessa operação, juntamente com jornalistas. Mas não há nenhuma garantia de que aquele que está com os pés no chão das periferias consiga, só por causa disso, compreender melhor o que lá se passa. Erros de análise podem ser cometidos independentemente do lugar de onde falam os analistas.
É por coisas assim que as ciências sociais são tão preciosas. Elas nos ajudam a olhar o mundo com rigor e atenção. Que é precisamente o que se deveria estar a fazer.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Desejos de ano novo


Matisse, La danse, 1910

Ano novo é sempre um momento de reciclar esperanças e perspectivas. No plano pessoal, no geral e no profissional, na cultura e na política. Ainda que não tenha feito nenhuma reflexão sistemática sobre isso, acordei com alguns poucos desejos na cabeça, que socializo aqui, na esperança de que não sejam fruto do otimismo que costuma nos afetar nessa época do ano.
1. Que as ruas voltem a se mobilizar, a pressionar e a incomodar, consolidando a perspectiva de que quem manda no país são os cidadãos, não os governantes e os políticos. As pessoas devem ser os principais agentes das mudanças que se fazem necessárias. Inclusive da mudança política. É com elas que o Estado precisa pactuar, pois o Estado só faz sentido se tiver na base um pacto social consistente.
2. Que a conflitualidade social e as lutas sociais viabilizem as reivindicações dos diversos interesses e façam com que elas sejam reconhecidas e atendidas. Mas que isso não se faça em prejuízo dos trabalhadores não diretamente envolvidos, nem dos cidadãos que precisam ser atendidos pelos serviços públicos. Que os interesses organizados tenham força, criatividade e lucidez para reverem suas formas de luta.
3.  Que a “guerra psicológica” descoberta pela presidente caia no ridículo, nas suas duas versões possíveis: a dos adversários do governo, que querem fomentar desconfiança para desgastar o governo, e a do próprio governo, que deseja intimidar e desqualificar as oposições e os que criticam o governo.
4. Que o debate político prevaleça e descortine um futuro para o país. Que se abram espaços para a cooperação inteligente dos partidos, que os que estão próximos se aproximem de fato, que a baixaria e a adjetivação mal-intencionada saiam de cena. Que Eduardo Campos e Marina Silva cresçam, se tornem conhecidos e consigam fixar um campo alternativo para a disputa presidencial, incrementando a qualidade do debate. Todos ganharão com isso, mesmo que os dois protagonistas não vençam. Aliás, a maior vitória deles será deslocar o eixo político do país.
5. Que a Copa do Mundo transcorra da melhor maneira e seja palco de muita mobilização social, de muita voz, e não somente de muita bola. Que os protestos cerquem os estádios, denunciem os gastos absurdos, apontem o que está errado na organização do evento e na estrutura do futebol brasileiro, impeçam a manipulação político-eleitoral de quem quer que seja e exijam padrão FIFA para tudo. E que, nos campos, vençam os que jogarem melhor, não os que tiverem maior torcida.