domingo, 27 de julho de 2008

Grandes e pequenos partidos




Aberto formal e efetivamente o processo eleitoral, algumas antigas e já bastante discutidas questões voltam a intrigar analistas e eleitores.

Como explicar a facilidade com que adversários incondicionais e muitas vezes furiosos no plano nacional se coligam em várias cidades do país, numa demonstração de elasticidade que beira a irresponsabilidade? Como entender que aliados históricos, afinadíssimos no combate ao governo federal, não consigam caminhar juntos em alguns municípios e cheguem mesmo, como ocorre em São Paulo com o PSDB e o DEM, a se converter em adversários e facilitar as coisas para candidatos de partidos contra os quais se batem por toda parte?

Partidos amigos no plano nacional convertem-se em inimigos no plano municipal e emprestam apoio a chapas que não se coadunam com os propósitos proclamados nos estatutos e documentos partidários. A “esquerda” alia-se sem muito pejo com a “direita”, dando origem a blocos desprovidos de coerência profunda. As disputas regionais são mais fortes que as nacionais e praticamente proíbem que os candidatos se declarem fiéis ou leais ao que quer que seja. Não é por acaso que os políticos não lidam bem com a fidelidade partidária e vivam tentando flexibilizá-la ou burlá-la, quase sempre em nome de uma necessária dose de “liberdade de pensamento e ação” ou da alegação de que o quadro partidário é jovem demais para ser racionalmente estruturado. Muitos dos atritos entre o Poder Judiciário e a política passam por aí. Boa parte das decepções do cidadão também.

Dado o caráter do federalismo brasileiro e do próprio regime presidencial instalado por aqui, as eleições municipais têm enorme valor estratégico. Jogam papel determinante tanto na sustentação dos governos estaduais e federal quanto na dinâmica das eleições para governadores e presidente da República. Deste ponto de vista, 2008 é a ante-sala de 2010. E quase tudo o que é feito hoje tem um olho depositado no que será feito daqui a dois anos.

O eleitor tem motivos de sobra para se sentir perdido e ludibriado. Dada a incoerência com que se depara, é como estivesse abandonado pelos políticos e pelos partidos.

E o que dizer então da força que ganham as pequenas legendas? Muitas vezes, os grandes partidos, ou os candidatos mais fortes, entregam-se a uma luta insana para obter o apoio dos pequenos. Fazem de tudo para integrá-los em suas coalizões, prometendo-lhes mundos e fundos e anunciando-os como fatores decisivos, verdadeiros fiéis da balança. Quase sempre a operação é feita simplesmente para prejudicar os adversários, na linha da máxima “o inimigo de meu inimigo é meu amigo”, ou seja, com o objetivo mais de atrapalhar que de somar ou agregar. É a sedução usada como mero artifício de campanha, sem muita sinceridade ou rigor.

São evidentemente operações legítimas, sancionadas por qualquer bom manual de estratégia política. É impossível criticar os partidos por desejarem mais apoio para suas chapas ou por pretenderem embaçar a vista e embaralhar os passos dos adversários. Apoios, em política, são como o sal da terra. Sempre têm alguma tradução prática e muito valor simbólico.

Coligações eleitorais pesam em termos contábeis. Fornecem aos partidos recursos de campanha, material de divulgação, minutos importantes na propaganda eleitoral, tribunas alternativas em certos setores, áreas ou regiões, além da possibilidade de ampliar os apoios pela via da multiplicação do número de candidatos comprometidos com o vértice da coligação.

Ao serem buscados e concretizados, os apoios funcionam como atestados de flexibilidade, desprendimento e largueza de visão, prova de que os candidatos não querem tudo, estão abertos a compartilhar os frutos da vitória desejada, como se desejassem demonstrar uma generosidade que a disputa pelo poder tende a ofuscar ou a impedir. Há alianças que simbolizam um compromisso com o futuro, outras que espelham a nova face de um partido, outras ainda que são um esforço para revalidar identidades ou sugerir caminhos alternativos. Pode ser extraordinário, por exemplo, o efeito simbólico da inclusão, no mesmo palanque, de pessoas que pensam diferentemente ou de antigos adversários, figuras dotadas de carisma específico, heróis de batalhas passadas, ícones da nacionalidade.

Mas os grandes partidos não costumam ser muito generosos quando se trata de decidir quem ocupará a “cabeça da chapa”. Nestes casos, o desprendimento é bastante relativo, e muitas vezes não passa de dissimulação e jogo de cena.

Partidos são seres de duas almas: a conquista do poder e a organização dos interesses e opiniões. A primeira delas exige visão tática e estratégica, é fria e obstinada, não mede esforços para se completar. A segunda depende de cultura, ideologia, teoria social, empuxo programático, marcas de identidade. Alianças sem outro critério que não o de viabilizar o acesso ao poder, ainda que legítimas, não ajudam à alma substantiva dos partidos e podem até mesmo feri-la, apequená-la ou descaracterizá-la. Justificam-se no curto e médio prazo, mas podem ser letais no longo prazo se, por exemplo, chamuscarem a identidade e a coerência doutrinária dos partidos.

Não se trata de uma escolha de Sofia. As duas almas são indispensáveis para o partido político. Há momentos em que simplesmente não há como escolher, os fatos empurram as decisões. Mas o ideal seria sempre manter as almas em equilíbrio e integração, até para que uma possa moderar ou chamar às falas a outra.

O problema é que hoje, nestes tempos “líquidos”, consumistas e velozes em que vivemos, a alma programática e ideológica encontra-se combalida, menosprezada e sem eixo para se sustentar. Com isso, a volúpia pelo poder ganha completa independência e espalha sua lógica pelo sistema político e pelos mais diferentes circuitos sociais. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 26/07/2008]

domingo, 20 de julho de 2008

Gramsci, os anos do cárcere


Meu amigo Luiz Guilherme Paschoalini, num comentário postado dias atrás, fez uma indicação que merece ser socializada.

Ele localizou o filme Antonio Gramsci. I giorni del carcere, de 1977, dirigido por Lino del Fra. Trata-se de uma tentativa de apresentar os anos vividos por Gramsci na prisão de Turi, em Bari, Itália (julho de 1928 a outubro de 1933), período fundamental para a redação dos Quaderni gramscianos e bastante analisado pelas discordâncias que o mais famoso prisioneiro do fascismo manifestou em relação à teoria stalinista do social-fascismo, aceita então até pelo próprio partido de Gramsci, o PCI, ainda que com reservas.

O filme é bastante datado, foi produzido em preto e branco para a televisão italiana e recebeu o Grande Prêmio do Festival Internacional do Filme de Locarno 1977. Esforça-se para reconstruir em detalhe a época e os personagens, valendo-se de bastante maquiagem, leitura de documentos e flash-backs. Riccardo Cucciolla faz um Gramsci de peruca e corcunda, numa operação de busca máxima de verossimilhança. Com isso, o filme perde em fantasia e força ficcional, flertando com o documentário mas sem conseguir sê-lo por completo. Sua recepção, portanto, não é unânime, mas vale pelo argumento central, precisamente os anos de Gramsci no cárcere. Deve ser assistido pelos que se interessam por Gramsci, pelas lutas políticas dos anos de 1920-1930, pela hstória do comunismo.

O filme, falado em italiano e com legendas em espanhol, pode ser acessado no Google Video:

http://video.google.com/videoplay?docid=-5212179366147622794&q=antonio+gramsci&ei=acODSMavF4SaqQKkuuyfCQ&hl=en

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Conhecimento, Informação, Perspectiva Crítica - 1



· “É preferível ‘pensar’ sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional -- isto é, ‘participar’ de uma concepção do mundo ‘imposta’ mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente --, ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?”. [Antonio Gramsci, “Apontamentos para uma introdução e um encaminhamento ao estudo da filosofia e da história da cultura”. Cadernos do cárcere, Caderno 11, § 12, Edição brasileira, vol. 1, pp. 93-94].

· "Mais vale uma cabeça bem-feita do que uma cabeça cheia". [Montaigne]

· "Onde está o conhecimento que perdemos na informação? Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?" [T. S. Eliot]



quarta-feira, 9 de julho de 2008

Eleições, Congresso e legislação



Grazie, Sizenando

O Portal UOL me pediu para falar sobre as eleições municipais que, a esta altura, já ocupam o centro da agenda política brasileira. O repórter Diogo Pinheiro buscou focalizar de modo especial o efeito que a legislação eleitoral tem sobre as disputas, sobretudo no que diz respeito ao controle e à regulamentação da propaganda eleitoral e dos gastos das campanhas.

Foi um papo bom, dinâmico.

Para os que tiverem interesse, aqui vai o link da UOL: http://eleicoes.uol.com.br/2008/ultnot/2008/07/08/ult6120u13.jhtm



sexta-feira, 4 de julho de 2008

A vida em posição de combate



Nada mais justo, nada mais digno de registro e apoio.

No próximo dia 7 de julho, às 19h, no Auditório Franco Montoro da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, será realizado um Ato Solene em homenagem a David Capistrano Filho.

A iniciativa é da Comissão de Saúde e Higiene da ALESP, com apoio da liderança do PT e dos deputados estaduais Adriano Diogo, Donisete Braga, Maria Lúcia Prandi, Roberto Felício, Rui Falcão e Vicente Cândido.

David, médico sanitarista de origem, comunista por vocação e dedicação, político sensível a todas as causas democráticas e sociais, foi um personagem decisivo na vida política brasileira entre 1970 e 2000. Como está no convite distribuído para o Ato Solene, foi um “idealista em estado puro” e um “rebelde com causa”. Prefeito de Santos, gestor de saúde inovador e audacioso, David olhava para o futuro, pensava grande. Foi um sanitarista da vida e um humanista radical. Merece ser lembrado e ter seu legado conhecido.

Ter podido conviver intensamente com ele foi uma das coisas que me fizeram crescer.

Por ocasião de sua morte, em novembro de 2000, escrevi o texto abaixo, que reproduzo aqui com o intuito de contribuir para um melhor conhecimento desta grande figura, e também para reforçar o convite para que se compareça ao Ato Solene na ALESP.

A vida em posição de combate

Segunda metade da década dos 70. Estávamos em pleno combate à ditadura. Uma brisa de liberdade e democracia teimava em perturbar a abertura lenta, gradual e segura imaginada pelo regime militar. Avançava-se, mas ainda era viva a lembrança da violência de 1975, de Herzog e Manoel Fiel, da carnificina policial na Lapa.

Por um momento, naqueles anos, em certos ambientes da esquerda, alguns chegaram a arquivar a combatividade, convencidos de que se impunha uma conduta prudente, pragmática, de algum modo dissimulada. Outros se aferraram a dogmas. Não eram muitos os que aliavam inteligência política – dedicada a solucionar problemas, superar impasses, desatar laços, construir a unidade dos democratas –, luta de massas e disposição para sair à luz do dia com cara própria.

Dentre os que sabiam promover esta aliança, havia um que se destacava.

David Capistrano da Costa Filho vivia em São Paulo, depois de ter saído de Recife ainda jovem, cursado medicina no Rio e amargado sucessivas prisões. Comunista de família, linhagem e tradição, mostrava-se tão hábil, generoso e competente como sanitarista quanto como dirigente político. Era um organizador nato, um dínamo: alguém que reunia, aproximava e animava, certo de que “teriam futuro os que soubessem trabalhar o presente e valorizar o passado”. Possuía uma energia inabalável, montes de idéias, tantos sonhos e projetos. No horizonte, estavam sempre os mais pobres, os trabalhadores, a grande nação brasileira.

Aquele médico era um intelectual. Tinha prazer em pensar, escrever, estudar. Não se tratava de um mero quadro partidário, mas de um homem público, para quem saúde, educação, saneamento, habitação, eram temas pertencentes ao campo do Estado democrático. Dedicava horas seguidas de trabalho criativo, empenho cívico e técnico à luta pela saúde do brasileiro.

Tínhamos ali, enfim, um político com todas as letras e em tempo integral, para quem a política não era jogo frívolo e calculista dedicado ao poder, mas paixão, entrega, imaginação, combate por princípios, esforço de renovação e agregação.

Foi dele a iniciativa de organizar e animar a Comissão Paulista pela Legalidade do PCB, que agregaria tantas pessoas até o início dos anos 80. Por sua inspiração, desenhou-se e ganhou corpo a política engenhosa, aberta e aguerrida dos comunistas de São Paulo, firmemente ligada ao movimento social e inserida com vigor no movimento democrático.

Em 1982, no auge da campanha que levaria Franco Montoro ao governo de São Paulo, David foi hospitalizado: leucemia mielóide aguda. Lutou como um leão. Em 1985, submeteu-se a um transplante endógeno de medula, em Houston, no Texas. Ficou meses por lá, isolado. Renasceu, aprendendo a conviver com as seqüelas do longo e duro tratamento.

Retornou com tudo à política. Filiou-se ao PT, um outro modo de ficar à esquerda. Foi trabalhar como secretário da Saúde em Santos. Elegeu-se prefeito da cidade em 1993, realizando uma ampla, democrática e bem-sucedida gestão municipal.

Terminado o mandato, David voltou a agir como médico sanitarista. Continuou procurando novas formas de cuidar da saúde e organizar serviços de saúde. Brigaria muito pela idéia do “médico de família” e não mediu esforços para coordenar o Programa Qualis (Qualidade Integral em Saúde), da Secretaria de Estado da Saúde. Mais tarde, passou a atuar como consultor do Ministério da Saúde. Permaneceria incansável.

A quimioterapia e as inúmeras transfusões, porém, haviam abalado seu organismo. O fígado seria comido por uma cirrose. De novo a luta pela vida. Os amigos, que ele sempre aproximara e reunira, reuniram-se agora em volta dele. Vários se ofereceram para doar parte do fígado. Definiram-se enfim o doador (o médico David Rummel) e a data da cirurgia. Logo no começo de 2000, centenas de pessoas começaram a levantar fundos para o novo transplante.

David acompanhava tudo de perto, reconhecido, emocionado. Jamais perderia, porém, o espírito público. Não se tratava de organizar uma campanha qualquer, mas de dar completo aproveitamento ao esforço dos amigos. Seria dele a idéia de transferir o eventual excedente para uma causa que fosse maior e beneficiasse os mais necessitados.

No meio de setembro, David Capistrano fez circular uma mensagem pela Internet. “É com alegria que escrevo aos amigos, companheiros e colegas, para agradecer o empenho e a solidariedade de cada um de vocês e de todos, que permitiram o êxito da campanha, em tão curto tempo. A meta foi superada. Peço que encerrem a campanha e reafirmo: o excedente será doado à Associação Saúde da Família, entidade das mais ativas e idôneas no campo da prevenção da AIDS, das doenças sexualmente transmissíveis e da gravidez precoce das adolescentes brasileiras”.

Sua morte, no dia 10 de novembro de 2000, aos 52 anos, deixou um vazio difícil de ser preenchido. Do triste evento ficou, porém, a certeza de que a vida vale sempre a pena e merece ser vivida em posição de combate.